sexta-feira, 21 de dezembro de 2007



A brasileirinha
[Foto de Ian Borim]

Faz pouco mais de uma hora que uma sopa borbulha. Ingredientes, já os levou dos mais diversos. Assim espera pelo momento de lhe ser dito:

"Chegou sua hora, brasileirinha".
E olha que é mesmo canarinha. Como há tanta certeza assim? Tudo em volta a influencia. Pelo toca-fitas sobre a mesa não me vem o som de guitarra do Neil Young, nem a voz melodiosa do John Denver.
"Boemia, aqui me tens de regresso, e suplicando te peço, a minha nova inscrição. Voltei para rever os amigos..."

Esta é a canção de uma fita cassete que viera de Paraguaçu e que agora faz ecoar a voz grave de Nelson Gonçalves pelas paredes de meu apartamento. No subsolo de um prédio isolado e um tanto afastado do centro da cidade de Torrington, Wyoming, estes versos invadem o coração do cozinheiro solitário, provocando-lhe arrepios. Como um bom conterrâneo do ex-Carmo dos Tocos, ele sente, nesta noite, o que lhe pesa de saudade da família e dos amigos do peito após passar seus primeiros dez meses fora do país.

Aqui, ao extremo sudeste do estado, aos pés das Montanhas Rochosas, nem a neve que cobre ruas e telhados ou o frio de dezoito negativos me impedem de me sentir de volta. Este apartamento-república onde moro, é americano-brasileiro em uma razão de quatro pra um ao longo do ano letivo. Mas hoje, ele é só Brasil. Não há sequer uma voz em inglês por aqui, pois estou só desde o Natal. A calefação elétrica cuida do ambiente físico, simulando o calor do dezembro tropical. A minha mente, então, voa livre e sobre suas asas chego a Paraguaçu, Minas Gerais.

Recordo-me ainda que na manhã de hoje a saudade já parecia ensaiar um golpe sobre os meus sentimentos, o meu frágil equilíbrio. Voltando a pé para casa após a missa das 10 h., o frio de oito graus negativos fazia meus lábios arderem. Em meu caminho sobre passeios cobertos pela intensa neve que caíra nos últimos dias, passei a imaginar como poderia ser Paraguaçu, se situada no Hemisfério Norte, sujeita àquele vento e àquela nevasca de dezembro. De fato, a pequena comunidade de Torrington, com pouco mais de 5.000 habitantes, é formada por um povo gentil, mas lhe faltam muitas das características de leveza e descontração típicas do meu Sul de Minas.

Horas passadas desde o entardecer, ultimamente ocorrendo pelas quatro e quinze, é que cheguei à cozinha para preparar o jantar. Surgiu-me, então, uma idéia: vou buscar meu toca-fitas e colocar música brasileira no ar — assim cozinho alguma coisa e tento viver um sonho, uma noite de fim de ano no Brasil.
Desse modo venho ouvindo a seleção de canções que recebi de meus pais recentemente. Ao som de modinhas, boleros, e dos melhores sambas que conheço, alguns golos da última garrafinha de Lowenbrau me fazem engasgar. Já sei que o problema vem da mente absorta a viajar no tempo e no espaço, a me mandar de volta para o sabor das Brahmas geladas no Bar do Vatinho e nas antológicas festas realizadas num certo apartamento à Rua Ceará, em Belo Horizonte. Não havia nada a fazer, uma vez que já permitira que esses filmes da memória me deixassem ainda mais vulnerável à solidão e à saudade.
De repente alguém canta:

"Bate outra vez, com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão, enfim".
Ah, meu querido Cartola, aí de cima no céu só você sabe o quanto as suas "rosas" sempre me inspiram e, agora, me emocionam e me levam para bem longe daqui.

A noite brasileira chega ao seu momento de máxima sublimação, para em seguida me oferecer o sabor do que, de fato, tenho ali, bem pertinho de mim, já à minha espera há um bom tempo. Feijão, cenouras, salsinhas, cebolas, pimentões, tomates, carne cozida e salsichas estão cansados do fogo brando. O apetite que me toma conta também vem dos trópicos; é quase igual àqueles antes das tradicionais e celebradas feijoadas de d. Lucci. Mas chega de saudade! Finalmente é chegada a hora da bóia:

"Vem cá, brasileirinha".
[Originalmente publicada n’A Voz da Cidade, de Paraguacu, em Fevereiro de 1982]

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